José Gomes, de 51 anos, aceitou o convite do Al Taawon… pela terceira vez. Depois de etapas em 2014 e 2016, o treinador português voltou numa história rara no futebol. Em entrevista a Record, o técnico fala sobre esta curiosidade, o futebol da Arábia Saudita e a saída – surpreendente para muitos, incluindo o próprio – do Almería.
RECORD – Está pela terceira vez no Al Taawon. O presidente gosta tanto de si que quando o apanha livre telefona-lhe? É assim que funciona?
JOSÉ GOMES – É um bocado por aí. Por detrás dessa evidência está o que construí das primeiras vezes, caso contrário não nos convidada novamente. As pessoas do clube dizem que o Al Taawon divide-se em dois momentos: antes e depois da nossa chegada. Em termos de profissionalismo e organização e todas as suas variantes. Quando chegámos cá, o típico dia a dia saudita era assim: eles estavam acordados a noite toda, rezavam a primeira oração e iam dormir outra vez porque é difícil treinar de dia por causa das altas temperaturas – chegam a estar na casa dos 43 graus e em agosto estão 52, por exemplo. Os jogadores acordavam a tempo de não chegarem atrasados ao treino, sem comer, e depois enchiam-se de doces e chocolates, além do chá e café cheio de açúcar. E as tâmaras – que são deliciosas. Erros alimentares, fora do que seria de prever para um profissional de futebol. De uma forma harmoniosa, e acho que essa é a virtude, conseguimos mudar muitas coisas e tornar o clube mais organizado e capaz. Por essas razões, além de termos chegado a um clube que tradicionalmente lutava para não descer e que apurámos para jogar a Champions. Depois de mim veio o Pedro Emanuel, que fez um excelente trabalho. Aliás, mesmo quando eu estou noutros clubes, as pessoas do clube costumam telefonar-me a perguntar sobre determinados jogadores e eu nem me sinto confortável: ‘Epá, falem com o vosso treinador’ (risos). Criou-se uma relação de confiança.
R – E há liberdade para deixá-lo sair a bem, tanto é que depois volta…
JG – Eles gostam de colocar uma cláusula no contrato que, em caso de rescisão unilateral, têm de pagar um determinado número de meses. No contrato anterior disse que nem havia discussão. ‘Basta avisarem-me duas semanas antes e pagam-me até ao dia em que acabar o trabalho. Mas eu faço a mesma coisa’. E fizemos assim. Felizmente, as coisas nunca correram mal e nunca fui despedido deste clube.
R – Das três vezes, esta é a segunda em que vai para a Arábia depois de uma passagem pela Europa. A transição custa-lhe mais ou a capacidade de adaptação já é algo que faz parte de si como pessoa e treinador?
JG – Já estamos adaptados porque já não é novidade o dia-a-dia do jogador saudita. Mas claro que é sempre diferente jogar contra o Aston Villa, Fulham ou Norwich, com 40 mil adeptos nas bancadas, do que na Arábia Saudita. Este povo adora futebol e consome tudo o que é relacionado com futebol, mas é uma diferença grande. Existem dois, três grandes clubes em que é possível respirar esses ambientes, noutros há menos gente. Gostam de jogadores com capacidade técnica para driblar e fazer coisas diferentes, de um futebol bem jogado.
R – Nota evolução em jogadores que, por exemplo, foram treinados por si na primeira ou segunda etapa e que reencontrou agora?
JG – Neste momento, o plantel tem cinco jogadores com quem já tinha trabalhado. Alguns deles fui eu que os contratei. Em 2014, eram permitidos três estrangeiros ou quatro se um fosse asiático. Agora, são sete e podem jogar todos ao mesmo tempo. O número de estrangeiros veio subir o nível do campeonato, com jogadores como Marega, Talisca e Aboubakar, por exemplo. É natural que agora queiram reduzir porque perceberam que podem ter cortado a possibilidade de muitos jogadores sauditas de se mostrarem na 1.ª Liga.
R – Assinou pelo Al Taawon em agosto. Não houve nenhum convite de Portugal que evitasse a nova etapa de emigrante?
JG – Houve em Portugal, Croácia e na Arábia Saudita. Fui rejeitando porque tinha quase tudo acertado para treinar em Espanha. Faltava assinar e durante esse período em que estivemos à espera para concretizar, rejeitei alguns projetos que, quando percebi que não ia para Espanha, teria aceite. Eu estava envolvido num projeto familiar de outra ordem e até estava tranquilo, mas a insistência do Al Taawon tocou na relação pessoal que tenho com um dos principais responsáveis do clube, que era uma ajuda pessoal. Aceitei. A verdade é que há um período em que aconteceram muitas coisas, recusei convites, alguns interessantes, porque sempre achei que as conversações com esse clube espanhol iriam ser concretizadas.
R – Refere-se a outro clube espanhol que não o Almería, certo?
Sim. Era um projeto interessante, mas por respeito ao treinador atual não vou mencionar o nome. Deixei a semente em Espanha e as pessoas reconheceram o nosso trabalho no Almería, pessoas que não perceberam a decisão do Almería em libertar-nos.
R – A saída do Almería foi um pouco estranha para quem estava de fora: abandonou na 36.ª jornada, com 62 pontos e seis jornadas por disputar. Estava em terceiro e havia a possibilidade de subir através do playoff de promoção. O que se passou?
JG – Foi algum nervosismo dos dirigentes. O dono do Almería [Turki Al-Sheikh] é uma pessoa apaixonada pelo jogo, um ministro saudita que adora futebol e que já comprou vários clubes em vários países. Eu disse-lhe que era um erro, que ia deitar fora o trabalho de uma época. Disse-lhe: ‘Se for buscar o Guardiola, Mourinho ou Ancelotti… seja quem for vai precisar de tempo para conhecer os jogadores’. Porque a análise dos jogos nunca é suficiente para saber com que jogador estamos a lidar e essa necessidade de tempo que o novo treinador iria precisar poderia hipotecar a época que estava a terminar. Estávamos em terceiro, faltavam seis jogos e oito pontos em disputa. Era difícil a subida direta, mas não impossível; já a subida através do playfoff estava perfeitamente ao alcance porque, reconhecidamente por todos, o Almería era a melhor equipa que melhor jogava e valorizava os jogadores. Não houve essa tranquilidade e serenidade. Acho que, em termos de imagem, não me prejudicou em Espanha, mas disse-lhe que que iria ficar com uma medalha de ouro: “Sou o treinador que se aguentou mais tempo nos clubes que tu compraste”. No ano anterior tinha tido cinco treinadores, por exemplo.
R – E o Almería acabou por não subir. Acha que teria conseguido a subida consigo?
JG – Sim. Agora é fácil dizer, mas disse no clube que deviam deixar-nos trabalhar. Assumi isto publicamente. Conhecia os jogadores, já tínhamos vivido muitas coisas e já sabia o que se passava na cabeça de cada um. Não havia nenhum treinador do Mundo com mais capacidade do que eu para subir o Almería naquele momento. Acho que foi um erro tremendo de gestão e que teve prejuízo a nível desportivo e financeiro.
Por David Novo